O Poder Transformador do Diálogo
Filosofia
Sensibilidades Filosóficas
“A humildade é um compromisso que precisa ser renovado constantemente, para nos afastar dos conhecimentos de expert, para promover o não saber.” (Anderson, 2009).
Isso significa encontrar com o cliente (e para além do contexto profissional, qualquer parceiro conversacional) e ter interesse genuíno em conhecê-lo em sua complexidade. A sua experiência é infinitamente mais rica que qualquer teoria pode explicar.
Antes de priorizar a pressa em entendê-lo, busca-se investir tempo de qualidade em aprender com o outro sobre sua experiência. Nos colocamos em uma posição de aprendiz, ávido por conhecimento, respeitando o roteiro que o instrutor (cliente) oferece em sua tutela. Este movimento exige humildade em reconhecer nossa ignorância, aceitar a vulnerabilidade de não saber e perguntar para ser informado, instruído.
Isso é diferente de fazer perguntas para confirmar hipóteses, para sugerir interpretações. A intencionalidade aqui é aprender e se deixar desenvolver pelo conhecimento construído no relacionamento. Se nós não abraçarmos nossa ignorância quanto ao outro, corremos o risco de preencher lacunas de entendimento com interpretações errôneas. Voltamos sempre à humilde posição de questionar nossos entendimentos para, desta forma, construirmos as perguntas que vão esclarecer a mim e ao interlocutor, quanto a sua realidade.
Toda resposta que é oferecida em diálogo é norteada por nosso interesse em entender toda a complexidade da experiência do outro.
Enquanto escutamos o interlocutor, fazemos perguntas para verificar nosso conhecimento. Essas perguntas esforçam o saber do instrutor (cliente), que se empodera enquanto maior conhecedor da situação que vivencia.
Anteriormente estas perguntas foram chamadas de perguntas conversacionais (Anderson e Gehart, 2007; Anderson, 2009).
Estas buscam, exploram e desafiam conhecimentos. São perguntas que começam com “o quê”, quero conhecer da apresentação mais espontânea do cliente.
Por exemplo:
- O que é mais importante eu saber?
- O que aconteceu?
- O que significa isso?
- O que responderam?
Quando ouvimos esta apresentação, frequentemente conhecemos alguns participantes da história, então começamos a perguntar “quem?”?
Por exemplo:
- Quem é você, para além do problema, em toda a sua complexidade?
- Quem são estes participantes?
- Quem é você nesta situação?
- Quem participa, mas não apareceu no relato?
- Quem poderia participar? E o que aconteceria de diferente?
Neste último exemplo evidenciamos que as perguntas não acontecem linearmente, mas de forma responsiva ao relato. Novos conhecimentos convidam novas perguntas, construídas com a única intenção de entendimento.
O entorno físico, como também o entorno subjetivo, é outro participante que estamos interessado em conhecer. Afinal, diálogos ocorrem nas trocas linguísticas entre interlocutores, inseridos em um contexto que legitima formas de ser e personagens internos específicos (Lenzi, 2013; Shotter, 2017).
Nos ocorrem perguntas como:
- Onde estavam nesta situação?
- Onde ocorrem estas situações?
- Onde você encontra com o seu problema?
- Onde o problema não consegue alcançá-lo?
- Onde vocês têm uma interação diferente?
- Onde você acredita que estará quando as coisas forem diferentes?
Outra forma como construímos nossas perguntas é através da articulação do tempo. Perguntas que remetem ao passado, presente e futuro convidam a construção de saberes complexos, para além do momento em que a experiência se caracteriza como problema.
Alguns exemplos:
- Quem é você hoje?
- O que aconteceu nessa situação? E o que será diferente na próxima vez?
- Onde estavam/estão/estarão quando nessa interação?
- Quem foi/é/poderá ser participante?
Outro conceito que permeia nossas perguntas é a responsividade de John Shotter (2017), como um processo de tornar espontâneo uma resposta nova.
A partir da exploração do espontâneo, construímos alternativas mais atuais e úteis ao cliente. Estas alternativas são aproximadas das situações problema através de reflexão, até que, pela prática suplementar, de tentativa e reflexão, avaliação e re-tentativa, elas são incorporadas ao repertório de respostas espontâneas.
Em suma, nada é espontâneo, natural ou automático se não for praticado em interações que respondem de forma a legitimar tal enunciado, ao ponto de sua expressão ocorrer sem intenção.
- O que você respondeu nesta situação?
- O que gostaria de ter respondido?
- Em que contextos você consegue responder diferente a um convite semelhante?
- Como outros participantes respondem?
- Que participantes facilitam respostas diferentes em você?
- O que dá coerência (qual a utilidade histórica social) para esta resposta espontânea?
- Quais diferentes respostas você tem?
- Como preparar o terreno para a expressão de uma resposta desejada?
Estas são perguntas que visam produzir conhecimento sobre as respostas espontâneas do cliente que possam ser atualizadas a partir da construção de conhecimento da situação.
Na prática, o cliente passa a experimentar, tanto na imaginação, quanto nas interações ao vivo, reflexões para um processo mais qualitativo de construção da sua forma de ser com os outros.
Polivocalidade é trazer muitas vozes ao processo de compreensão dos relacionamentos que constroem determinada realidade.
Podemos entender mais deste conceito com a compreensão de personagens internos e self relacional do construcionismo social.
Este entendimento faz referência aos processos sócio-históricos que nos desenvolveram em quem somos: os relacionamentos mais relevantes da nossa experiência criam roteiros, itinerários, por onde as pessoas entendem umas às outras e oferecem suas respostas.
Desta forma, respondemos de forma semelhante a interações que nos remetem a estes itinerários, estas formas testadas e avaliadas como coerentes ao longo do tempo, são apresentadas espontaneamente pelas pessoas no diálogo.
Quando percebemos formas diferentes de ser e responder a interações, podemos iniciar perguntas que buscam entender aquelas personagens performadas pelo outro, caracterizando-as em vozes internas, ou personagens internos. Quando complexificarmos o self podemos experimentar maior reflexividade, um diálogo interno, que constrói respostas com mais conhecimento do que uma situação pede, e quais os resultados preferenciais para aquela interação.
Também praticamos a polivocalidade quando fazemos o convite a outros participantes presencialmente nas nossas conversas. Quando um cliente nos relata sua história e um outro participante aparece e tem relevância naquela interação, eu pergunto se o outro gostaria de convidar esta pessoa, ou estas pessoas, para uma conversa conosco, quando poderemos entender também por eles suas descrições daquela realidade, suas semelhanças e diferenças agregadoras. O cliente é quem define se estes outros participantes são úteis ao processo ou não.
De forma semelhante, quando outros participantes não podem estar conosco presencialmente, usamos de cartas para conhecê-los, ou quando mesmo isso se torna inacessível, convidamos a voz internalizada deste no nosso cliente, para entender uma possível descrição alternativa, “você fala desta pessoa como alguém íntimo e bastante relevante na história, se ela estivesse aqui, conosco, o que ela teria a contar? Como ela responderia a escuta da sua narrativa?”.
Esta forma de fazer terapia é um convite à desconstrução do individualismo que culpa individualmente as pessoas pelo que vivem, sem interessar-se pelos participantes que testemunham aquela realidade e, neste entendimento, a constroem junto com o cliente.
São perguntas sociais, que compartilham a responsabilidade pela transformação do nosso mundo.
Podemos fazer muito pouco sozinhos, mas este convite evidencia que nunca estamos sozinhos e a mobilização de nossas comunidades transforma quem somos e o nosso entorno.
Respondemos às demandas locais de nossos clientes sendo os terapeutas que eles esperam que sejamos, enquanto, simultaneamente, somos os terapeutas que sabemos que podemos ser, sem ferir nossos valores epistemológicos.
Portanto é crucial uma postura reflexiva do terapeuta para avaliação das respostas que lhe ocorrem.
Temos conhecimentos de uma vida de experiências, e tudo isso é bem vindo ao diálogo, contanto que, nesta avaliação, fique evidente que a voz que oferece uma experiência é a voz do terapeuta.
Alguns formatos principais podem facilitar o compartilhamento seguro de experiências, sendo a pergunta conversacional a nossa preferência.
Quando somos tocados por um conteúdo (seja por mobilizações corporais, emocionais, de identificação, ou curiosidade, etc.) nos engajamos em diálogo interno para entender o que nos mobilizou ali, qual o nosso entendimento daquilo e como podemos fazer uma pergunta ao outro que convide o seu entendimento, para que possamos estar mais próximos dos significados do cliente, enquanto abrimos nossos próprios para questionamento e reflexão.
Outras formas seriam: testemunhos, reflexões, convites a testemunhas externas, cartas testemunhais.
Este norteador faz referência a legitimidade que oferecemos a todas as vozes participantes de um processo, sejam elas internas, externas, ficcionais, culturais, independente de sua fonte, buscamos conhecer este interlocutor, oferecendo espaço de escuta, de entendimento. Este compromisso visa tirar da marginalidade vozes que podem incentivar a criatividade na construção de respostas mais qualitativas aos participantes (Gergen, 2018; Lenzi, 2017).
O acolhimento democrático e exploração de todos os participantes dissolve julgamentos em nome do entendimento, proporciona uma liberdade não apenas individual (que arrisca a liberdade de outrem), mas uma liberdade social, em que fronteiras de respeito foram construídas sob autoria dos participantes, comprometidos com sua dedicação ao produto.
Conhecimentos são enriquecidos, experiências são vividas, intimidade desenvolvida, somos mutuamente transformados, ou algo não está bem na interação.
Como explorado anteriormente (Anderson e Gehart, 2007; Anderson 2009; Lenzi, 2017), a prática colaborativa dialógica proporciona trocas de tamanha complexidade que o novo conhecimento, o engrandecimento de seu saber, é um produto inerente ao processo e para todos os participantes, clientes, famílias, comunidade e também para o terapeuta.
Aliás, nosso compromisso com a transformação mútua nos coloca em constante avaliação dos processos em que participamos, tanto em conversações internas, quanto externas com os clientes. Dessa forma, procuramos sempre enriquecer o entendimento que faço do diálogo que construímos juntos em terapia, treinamento e outros contextos relacionais.
Esta avaliação ocorre com as perguntas de verificação do entendimento para alinhar interpretações com as do outro, por exemplo: ‘quando você diz esta palavra, posso entender dessa forma?’, e uso palavras que entendemos como semelhantes para verificar se temos significados compatíveis para aquele momento da interação. Assim temos o cuidado e atenção na construção do nosso saber do outro.
Outra forma de avaliação é pedir um espaço para conversarmos sobre o processo, as expectativas do cliente e como ele avalia nossa interação.
Este exemplo das avaliações são ilustrações de como estamos aberto para a transformação da nossa forma de ser como terapeuta para cada cliente.
Quando experimentamos uma relação dialógica não conseguimos deixar aquela interação da mesma forma que chegamos.
O poder transformativo do diálogo
Quando estamos com nosso cliente, nos atentamos aos conteúdos que ele me oferece para a conversa.
As metáforas do convidado e anfitrião e do terapeuta como alfaiate (Lenzi, 2017) podem ilustrar este entendimento: somos recebidos na história (cômodo da casa) do cliente, onde ele acredita ser mais apropriado. Metaforicamente, não olhamos debaixo do tapete ou procuramos pelos esqueletos nos armários.
Como alfaiates, costuramos com o tecido escolhido pelo cliente. Nossas preferências por tecido são secundárias. Nossa expertise é costurar o produto como encomendado pelo cliente, ciente dos nossos limites e facilidades.
Na prática, isso aparece no nosso compromisso em conversar com o cliente sobre o que ele acha importante para a conversa. Não interrompemos sua apresentação, mas esperamos pelo momento que ele considere apropriado para nossa participação. Só então nos engajamos na construção de uma pergunta que seja fruto da nossa curiosidade pelo ouvido, norteada pelo interesse em querer aprender com o cliente sobre ele, em entender uma situação e verificar se nosso entendimento está de acordo com os dele.
Não precisamos tomar notas sobre o que é falado, isso apenas atrapalharia nossa atenção na escuta com. Confiamos que, quando chegar o momento de nos expressarmos, vamos lembrar do que é importante para trazer como curiosidade, ou reflexão. Dessa posição de genuíno interesse no conteúdo do outro e humildade para aprender com ele surge o potencial transformativo do diálogo.